terça-feira, 2 de outubro de 2007

Pensando

Estranhamente, um dia pensei: não deveria ser assim. Com essa perda tão dificil, sem compreender o que se passou, com essa ausência tão cruel, tomada de dor renitente e saudade permanente, pensei que talvez pudéssemos vir a ser diferentes, pessoas melhores.
Pensei que a dor da morte que acontece na casa do vizinho e leva seu único filho, pudesse me fazer repensar a vida, já que tamanha dor eu jamais sentiria. Mas pouco tempo depois, a morte chegou na minha casa e carregou a vida de uma filha minha.
No meio de tanta dor e sofrimento tive a certeza de que as coisas que nos pertubam deveriam ser grãos de areia perto dessa dor tão devastadora. Mas não é assim que funciona. Fiquei surpresa. Nem mesmo com a morte de um filho se deixa de ser tão mesquinho? Que coisa é essa tão preemente, que afazer é esse tão importante, que nos tira a capacidade de perceber o que é de fato importante? O que é ser humano? O que é ser, humano?
Fato consumado, nem mesmo a morte de um filho nos deixa ser menos feio, menos perversos, vaidosos e prepotentes.
- Você esqueceu de secar os pés, está molhando todo o chão da sala!!
Os pés da minha filha, os pés do filho do vizinho, não mais ficarão sujos de terra, nem molhados da água da chuva; suas vozes se calaram, seus ouvidos estão surdos, enterraram suas gargalhadas.
O mundo não para, não pode e nem deve. A cada instante tantos filhos se vão, tantos filhos nascem; o dia ainda amanhece e no seu fim a noite ainda escurece; a chuva continua chovendo e a lua continua aparecendo; o sol continua nascendo e mais tarde continua se escondendo.
A Gal ainda canta Honey Baby e teremos sempre noites quentes.
E de repente, o céu se pinta de estrelas. O mundo ainda briga, o vicio ainda se alastra. As dores nunca cessam e o amor vai se diluindo. Valores se misturam, se perdem nos caminhos. À vida não é dada a importância merecida. Quando se acaba, escondemos a morte de nossas conversas.
Deixando-a de lado, voltamos à vida. Qual vida?

A vida que nos acorda sem nosso bem querer.
A vida que nos leva a deitar sem mais poder dizer: boa noite, até amanhã.
Por quê brigar por tudo se tudo é nada.
Por quê brigar por nada se nada é nada.
Pois tudo é nada e nada é tudo.
Tudo é ínfimo perto de sua partida.

Mas assim somos e quando o tempo passa, mesmo com a dor e a saudade, voltamos a ser mesquinhos e brigamos por tudo, reclamamos de tudo
Resta a esperança (e eu tenho certeza) de que uma mãe muda sim muitos valores.

O que sou?

sou carne, sou osso e coração
sou amargura, dor e revolta
nua, crua, mãe e as vezes madrasta
ingênua, louca, presa e solta
sou música, poesia e cansaço
ganho, perda e desaforo
sou busca, poeira, barreira, ventania e as vezes insana
vou crente, volto cética
vou na esperança, volto na angústia
sou sol morno, água fervente
bolhas de sabão, bolotas de algodão
tentativa de pureza com marcas de existência
tomando a frente, esperando o melhor
sou corpo de agonia, alma de correntes
buscando a cada dia, sonhando a todo instante
querendo a lua cheia, buscando as estrelas
fazendo promessas, ficando na espera
aflita, rejeitada, abandono
fui menina, fui ferida e fui susto
rua de terra, barranco, abacateiro
cobra, trator, mordida de cachorro
com um menino atrás da casa, da mãe a surra da ignorância
inocente no colo do vizinho, ingênua na safadeza do tio
correndo da vassoura, de tapa na cara na frente do namorado
fui medo de surra, pavor de pai
namoradeira, cheia de mentiras
brinquei com a vida e não percebi
sou passado, presente, quero ser futuro
estou apagada, quero me acender e ascender
estou paralisada, quero caminhar
estou assustada, meio apavorada, traída pela vida, pela crença que eu tinha
pensava no futuro de minhas meninas
ganhei um golpe do presente
tenho minha Mariana, filha que tanto amo, mas não consigo ter paz
tenho meus meninos queridos, mas não tenho sossego de alma
tenho a mim e os amigos, mas falta um pedaço de mim
busco tudo que posso para deixar essa fala
mas minha boca não cala, meu peito não se aquieta
meu coração não entende, minha cabeça não para
desassossego, desencanto, canto sem luz
gira o mundo, corre o carro, escorre a água
toca a sirene, a musica e o sino
ladra o cão, a fome cresce, o povo padece
a vida caminha, o dia amanhece, chega a noite e a lua aparece

e a perda?
real, ferida sem cura, buraco vazio.

Chora céu! Aniversário de Elis, saudades da Chris.

Céu enegrecido, por vezes clarões riscando seu infinito. Ouço trovoadas que parecem gritos de dor. Ele está se preparando para mandar sua água.
Há muito Elis se foi, há pouco se foi Chris. Elis e minha filha deixaram seus filhos, filhos que ficaram sem mãe. Triste constatação, essa. Filmes e fotos, tudo é tesouro, alento pra quem fica.
Queria assistir ao seu aniversário, Elis! Se estivesse aqui, queria cantar com tua alma pela partida da Chris. Carregou com você sua voz, mas deixou-a para a eternidade. Estaria fazendo sessenta anos, como seria? Continuaria sendo Elis brava, Elis pimenta, voz de prata saindo da garganta de benção?
Ouvi pelo rádio que havia partido: me joguei na cama soluçando sua ida. Elis guerreira, pequena grande mulher. Gigante. Elis inquietante, borbulhante, de gestos grandes e presença marcante.
Lembro-me sempre de Elis: adorava vê-la, era um deleite ouvi-la.
Te conheci rapidamente, apenas quando fui me despedir. Estava maquiada, um batom rosa, na mesma cor do batom que passaram nos lábios da Chris. Quisemos que partissem bonitas dessa vida aguerrida, dessa luta feroz...
A Chris faria 34 anos em maio. Chris guerreira, mas de gestos amenos. Presença aconchegante. Todos os dias, com seus minutos e segundos, lembro da Chris. No dia de hoje, misturo as duas. No dia de hoje, continua a pergunta: onde está a Chris, onde está você, Elis? Peço que a encontre, cante para ela que tanto curtia te cantar e te ouvir, desde criança ouvia-me te exaltar. Cuide dela por mim e mande um recado: quero que sejam felizes, que curtam o paraíso. Cuidaremos dos que aqui ficaram até que todos nos encontremos.
Céu enegrecido, as trovoadas continuam ensurdecendo meus ouvidos, descarregando sua ira, jogando na terra a sua dor, despejando todo o seu choro.
A dor que tenho hoje faz com que eu perceba que cada um carrega a sua. Tanto a dor quanto a saudade são únicas. Nada de dentro, nada da alma, pode ser dividido: te dou um pedaço de pão, divido contigo um copo de vinho, mas dor, agonia e desespero, cada um de nós sente a a sua.

Feliz Aniversário

O mês de maio está próximo e com ele seu aniversário está chegando e não posso mais te desejar felicidades, nem mesmo mandar um telegrama. Queria cantar tua alegria, queria brindar o seu carinho, escutar mais uma vez você cantar Banho de Espuma, reunir os seus amigos e ouvir suas histórias. Dia seis passarei sem tí, quero que seja feliz.
Perpetuo nessas folhas todo amor do mundo, cravo nessas palavras minha saudade eterna. Levarei comigo seu jeito doce de ser, sua bondade e compreensão.
Palavras se perdem ao vento, mas não essas, pois deixo-as cravadas de lágrimas, dor, saudade e lembranças. Essa homenagem, meu amor, cheia de dor e saudade, ficará para quem te amou e te respeitou.
Você partiu cedo mas derramou na terra amor, ternura e carinho. Chorou teu choro de agonia, fechou teu peito na tristeza, trouxe no ventre seu fruto de um amor, lutou sua guerra, rumou seus últimos dias de vida acreditando na vitória. Pararam seus passos, calaram seu grito, te de deixaram na dor. Arrancaram seu sorriso, cerraram seus olhos.
Fica uma saudade imensa e a grande certeza: o meu amor, o amor do seu filho, do seu pai e da sua meio filha meio irmã , ninguém, ninguém poderá nos tirar.

Um novo dia

A cada acordar, te busco no abrir dos olhos. O peito se aperta e começo a chorar. A tristeza é tão grande, tão cheia de um vazio imenso! Busco correndo sua irmã, seu pai e as crianças. O dia é de fato novo e sua ausência é de fato eterna. Ligo o rádio e penso: por hoje minha vida continua. Estou buscando o que já busco há vários anos, mas com uma doída diferença: as dores e mágoas são maiores.
Quero fazer plágio de algo que li não sei onde para dar cor à minha vida:

Meu pai era escuro. Minha mãe, lilás. Minha vida já foi cor de rosa e meu coração dourado. Hoje estou transparente mas cheia de um verde crescente, buscando desesperadamente o branco da paz, que por ora se faz ausente. Conto com o dia que chega brevemente carregando em seu céu um azul singelo e uma lua de prata. Passeata de estrelas e cantos a beira mar, uma roda de amigos e paz a borbulhar. Não passo te buscar, não pode mais voltar. Tenho que aceitar,mas antes, preciso aprender. Me falta o chão, me falta a respiração. Falta sua vida, falta você!

Feliz Ano Novo

2005 está quase chegando. 2004 te levou de nossas vidas.
No meu coração tenho espinhos cravados deixando o sangue correr escondido.
Não posso sorrir para os convidados. Só consigo comer sem parar, pensando que a dor de sua ausência pode ser aliviada com o ato de mastigar sem parar.
Não sei por que você foi embora sem dizer adeus. Não entendo. Se sabia que ia viajar deveria ter me avisado! Tentaríamos conseguir uma passagem pra você poder voltar.
Queria muito saber se de onde você está consegue escutar o barulho dos fogos de artifício. Estouram muito forte e eu, inerte, sentada na calçada, sem conseguir chorar.
Não se cubra essa noite, está calor e pode ser até que chova. E se o céu chorar, juntarei minhas lágrimas com o choro dele para encharcar meu peito pequeno, estreito, tão apertado.
Ouço vozes, risadas e choro de crianças, ouço o tiroteio dos fogos avisando que o ano novo vai chegar. Só não avisam que você não vai estar.

Feliz Natal

Não queria nada. Bebida nem comida, sequer possível serenata. Não precisava mesa farta nem frutas adocicadas, não precisava roupa nova, presentes nem cabelos arrumados.
Podia ser calça furada, chinelo de dedo, cabelo desgrenhado. Feijão com arroz, bife quase queimado, e uma salada bem temperada como você gostava. Qualquer toalha, pratos sortidos e pequenos, copos de requeijão.
Por que só hoje eu vejo que poderia ser assim? Como se pode saber que estando todos juntos, que é o que importa, poderia ser tudo mais simples? Só mais uma data, só mais uma noite que no dia seguinte vai encontrar mais um dia, como qualquer outra noite encontra o dia seguinte. Por que precisa alguém ausente pra gente perceber que tudo poderia ser diferente? Tudo simples, mas com você aqui! Quando não falta alguém tão amado, come se muito, bebe-se bastante, as pessoas se maquiam e põe roupa bonita, compram presentes. Afinal, não se pode saber que um dia, e sempre haverá um dia, vai faltar alguém...
Alguém que se foi há muito tempo. Alguém que se foi há pouco tempo. Alguém que se foi há pouquíssimo tempo. Que festa é essa? Aniversário de Jesus? Que festa é essa onde piscam luzes em árvores de Natal, nos prédios, nas portas dos comércios, piscam na cidade, no país inteiro, no mundo todo? Que festa é essa onde se come muito enquanto milhares de seres humanos estão abandonados?
Quando um filho se vai para não mais voltar pode se ter mesa farta, banhada a ouro e em cima dela lagosta e caviar. Tudo terá seu próprio gosto. Sempre teremos pessoas ausentes e continuaremos a ter, as noites de Natal continuaram chegando. Mas com um filho ausente, arroz com feijão será suficiente.

Está chegando

O natal está chegando, não sei o que fazer. Ficar sozinha ou me arrumar e sair, comer que nem louca enquanto espero a meia-noite para dizer Feliz Natal? Feliz o quê?
Não te ver sorrindo, cantando Jingle Bel com a tia Sonia, não sorrir ao ver você batendo nos copos de cristail? Não te ver feito criança diante da mesa farta com seus olhos gulosos sem saber o que comer primeiro?
Feliz o quê, saber que dormirá para sempre? Saber que no fim de ano não vai mais acampar?
Será que vão pagar pelo o que fizeram, pelo o que não fizeram?
Quanto custa uma vida?

Susto!

Meus olhos se abrem acordados pelo susto... a Chris se foi!
Vejo-a naquele caixão e enlouqueço quando lembro seu corpo mal ajeitado. O que isso importa agora? Sua vida não estava mais ali. Roubaram-na naquela cidade escura e fria, naquele imenso matadouro.
Quanta crueldade fizeram contigo, meu doce. Que maldade te mandarem pra casa doente, morrendo, enganaram a todos fazendo-nos crer que tudo estava bem. Mentiras, tudo mentira!
Malditos, todos malditos! Pais, filhos, tios, primos, sobrinhos ou irmãos. Católicos, evangélicos, espiritas, ateus, cristãos, judeus, budistas, hari krishnas, quantos são eles? Mostra pra mim filha! Quero ver um a um, olhar nos seus olhos, entrar em seus cérebros. Será que eles tem, será que pensam? Será que dormem à noite, conseguem repousar em paz? Se vestem de branco e andam apressados, entram nos quartos aviando receitas. Alguns, de repente, até sorriem, mas brincam de faz-de-conta.
Vem meu amor, senta ao meu lado e conta para mim. Quantos foram, quem são eles? Te abriram e quando fecharam sabiam que estava acabado, sabiam que o fim estava chegando...
Na tentativa de se eximir, disseram que você fazia teatro. Queria Coca-cola, dormir um pouco para descansar de tanta dor? Pediu um Diazepan? Tanto tempo sem dormir! Pediu um pote de gelatina? Estava exausta, lutou sem parar, sofreu cada minuto de todos aqueles quarenta dias.
Te vejo na porta de calção azul:
- Mãe, me leva pro hospital, não aguento mais de dor.
Todos dormiam, nem recado deixei. Fazia teatro? Por que não estava ao palco? Nem vi a cortina se abrir!
O telefone tocou, era seu pai. O espetáculo havia chegado ao fim e a platéia permanecia na calçada. Mas não era porta de um teatro, era do matadouro. Quando a Mari chegou, pensei que ainda podia dar certo, vai dar certo! A casa cheia, o desespero, a dor. Não gritava, não chorava nem morria, andava pela rua com meu corpo de agonia, com o coração rachado. Eu já sabia, ela não voltaria mais.
Lembra daquela senhora, na cama em frente a sua, enquanto você se recuperava da cirurgia? Você dizia: coitada dela, mãe, sente tanta dor!Sua generosidade nunca te abandonou. Mesmo no meio de sua dor, enquanto sofria, lamentava a dor vizinha...

Amanheceu

O dia está chegando mas o céu ainda está cinzento com o sol se preparando para chegar. E meu peito, até quando vai suportar?
O pássaro cantador já está voando pelo quintal enquanto a casa ainda dorme.
O meu sono já se foi. Acordo com você todas as manhãs, deito com você todas as noites.
É a lei da natureza, é a vida... mentira!!! A lei da vida é viver bastante, a lei da natureza é os pais irem antes.
Onde você está? Dorme? Canta Rita Lee e Gal? Assiste às vídeo cassetadas junto com o Cauê? Gargalha solta no sofá? Que delícia te escutar, ver seu lado criança se manifestar. Onde você está?
Meu peito bate forte, meu corpo treme. Já são longos e penosos nove meses de saudade. Que vida mais estranha! Seu sobrinho Leon chegou ontem à noite. Um dia apenas separando a data da chegada da vida com o dia seguinte marcando nove meses de sua partida.
O céu já está mais claro e a casa ainda dorme. Meu peito chora, a saudade aflora e traz a dor que corrói.
Trouxe comigo para o quintal o livro Perfume de Eliana, escrito por Alice, sua mãe, que a perdeu em um acidente de carro aos vinte e poucos anos. Não consegui ler A vontade de falar com você chegou, imperiosa.
O jardim está lindo! A figueira de seu pai, frondosa, majestosa.; os brincos de princesas, ou lágrimas de cristo, estão maravilhosos; as rosas, vermelho vida, vermelho amor, esplêndidas. As margaridas ainda não vingaram. Espero, ansiosa.
Vem chegando o azul do céu e a casa ainda dorme. Que silêncio bom!
Falta meu bichinho, o teu doce frutinho.
Seu pai perdido, sofrido e sem rumo. Sua irmã cansada, exausta e ansiosa. Todos buscando você, buscando viver, na busca do por que.
O dia já amanheceu. Você já acordou? Sempre quis dormir um pouco mais e o Cauê nunca deixou. Hoje está estabelecido que dormirá para sempre. Por quê? Me diz, quem decidiu? Poderia dormir aqui, eu levaria o Cauê para passear. Você dormiria em paz. Mas não para sempre. Não precisavam te levar.
O dia chegou e a luta vai começar, vem me ajudar, vou comprar Coca-Cola, posso fazer um pão. Você não tem que estudar? Filha vem pra casa almoçar. E se o Flávio te ligar? Terá tempo para conversar? Ah! Meu amor, onde você está? Diz logo, a Mari pode te buscar. Não, não quero resposta, eu sei onde você está. Só preciso te encontrar, acariciar seus cabelos, apertar suas bochechas...
O que sei, só o que sei, é que viva o quanto eu viver minha pergunta ninguém irá responder: por que?

A, B, C, D...

absurdamente insano,
bestamente por descaso,
com certeza desumano,
dolorosamente verdadeiro,
erradamente no tempo,
francamente um abuso,
geladamente sem critério,
humanamente inaceitável,
ignorando a dor,
jogando com o tempo,
kalundun,
lamentavelmente ineptos e adeptos,
magramente humanos,
nefastos,
obedientes,
perfeitamente indecentes,
querendo despachar,
redondamente impunes,
sabiamente cretinos,
turvamente mentem,
urubus ululantes,
vagarosos,
zuando, zunindo.